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A VIOLÊNCIA MATOU MINHA MÃE by Kalew Nicholas Lyrics

Genre: rap | Year: 2021

[Verso 1]
Deitados na cama, despensa da casa
Ela me disse que ali, corpos colados ao colchão
Nenhuma das traçantes que iluminavam a janela de uma ponta à outra nos atingiria
Dirigidas a reféns de uma guerra alheia a nós
Quantos sóis são necessários
Pra cessar essa noite atroz
Que aterroriza em aterrissagens
Transportando a dor no cós?
Essa cidade é um microcosmo
E incapaz de desvendá-la
A vi atrelada aos fragmentos da minha mãe que ainda carrego
Tipo os projéteis perdidos que minha vó colecionava

[Verso 2]
O helicop beirava a sacada
O vento invadia, a fumaça subia
E som reverberava do bater daquelas asas
Que, libélula mecânica, comia só as moscas
Que esquentavam sua comida em micro-ondas
Mas feria qualquer vida que estivesse nessa ronda
Eu nem sabia que era aquilo que matava meus colegas de classe
De pele zebrada em círculos jogada entre fitas zebradas
Em Maricá, meu pai avisou que lá
No apê da Doris e Vavá
A vida seria diferente
Na escola, se ouvisse estampidos secos
O certo era atirar-me ao chão
De concreto batido e gelo
Estrangeiro em outra casa
Forasteiro em outra terra
Fresh Prince of Tijuca
Com colegas da favela
E privilégios classe média
Todo cenário é perfeito
Quando o papo é tragédia
Num sistema de castas, o vô Vavá era motorista
E um motorista me levava da escola pra minha casa
E uma Kombi me levava de casa pra escola
O carro da patroa que o motorista usava
Era a carruagem em que desfilávamos
Num bairro de primeira e terceiro mundo
Em que roubos de veículos eram tão comuns
Que terminavam em morte
[Verso 3]
De guarda tenho um cão que apenas late em vão —
Aceitando que tragédias não têm boa audição
E, mais Beethoven que Van Gogh
O cão é só em multidão
Não voltava só da escola
Não chegava atrasado
Não ficava até tarde
Nem ficava pro teatro
Não entrava em confusão
E tentava não ter lado
(Quase sempre tentava
Volta e meia era porrada)
Atirava o corpo ao chão
Ao menor sinal dum berro
Me escondia no banheiro
Com medo de estampidos
Soterrava-me em janelas
E nunca soube andar sozinho
Por puro medo de apanhar
(De quem era maior que eu
E de quem era menor também)
Essa tragédia, no entanto, é muito mais sutil:
O berro veio da janela errada, a imunológica
O cão viu o ladrão entrar e nem ladrou
[Verso 4]
Frente ao Morro do Macaco
Ao som de AKs e muitas FALs
Submeteram-na à quimio
Que pretende-se alquimia universal:
Tiraram dela os seios
E a solidez dos ossos
Lhe deram ar em poste
Pra impedir sua tosse
Metástase tomou-lhe
Todos os seus órgãos
E a morte já lhe coube
Muito antes duma cova

[Verso 5]
Minha mãe resistiu tanto
Ao câncer e ao passar dos anos
Que soava irreal que, um dia
Algo seria capaz de detê-la
Que células invisíveis
Seriam capazes de superar sua teimosia
Que o lado negativo dessa vida
Mataria por dentro um ser tão vivo
Eu cresci nessa letargia que me impedia de entender
Como real a realidade que assolava esses dias
Como se soubesse estar num Show de Truman
No meio de mais uma delusão solipsista
Abaixo vinte mil léguas submarinas
Tempestade parece tanto com bonança
Que nem percebo inexistir a terra à vista